Silvia Ferabolli é doutora em Política e Estudos Internacionais - TopicsExpress



          

Silvia Ferabolli é doutora em Política e Estudos Internacionais pela School of Oriental and African Studies – SOAS, University of London. Membro do NUPEG – Núcleo de Pesquisa em Estudos Globais. Professora de Relações Internacionais da UniRitter Porto Alegre ([email protected]). - SOBRE O PRESIDENTE MORSI E OS CONFLITOS NO EGITO - “O exército informou o presidente Morsi às 1700 GMT que ele não era mais presidente”. Com essas palavras, no dia 03 de julho de 2013, Abdul Fatah al-Sisi, o líder da SCAF, o Conselho Supremo das Forças Armadas do Egito, anunciou ao povo egípcio que o primeiro governo democraticamente eleito na história do país estava deposto. E por que Morsi foi deposto? Porque durante seu primeiro ano de governo ele não conseguiu resolver problemas como corrupção endêmica, desemprego crônico e subdesenvolvimento econômico histórico. Ainda, ele não conseguiu romper com os privilégios maciços de que gozam os membros das forças armadas do país e não conseguiu fazer com que todos os grupos políticos do Egito concordassem com a nova constituição que foi aprovada durante esse primeiro ano. Esses seriam motivos suficientes para se derrubar um presidente, não? Não. Não seria razoável esperar que em apenas um ano qualquer um dos problemas estruturais do Egito, acima descritos, pudessem ter sido resolvidos. Se não foram essas as razões que levaram à derrubada de Morsi, o que foi, então? Poucos estão se arriscando a falar. Temem que os eventos de amanhã desmintam análises feitas hoje. Contudo, para aqueles que acompanham a política egípcia não há uma semana, mas há uma década, uma coisa pelo menos é certa: a irresponsabilidade da oposição pode ter desencadeado no Egito um processo que levará a tamanho caos social e ruína econômica que os anos de Mubarak poderão vir a ser lembrados como a Belle Époque egípcia. Por que estou culpando a oposição pela situação do Egito, hoje? Porque essa oposição vem orquestrando esse golpe – sim, foi um golpe – desde que os resultados das primeiras eleições legítimas e genuínas da história do país anunciaram a vitória da Irmandade Muçulmana (MB), alçando ao poder um grupo que, mesmo que (ainda) não desafie o status quo, não é o grupo de preferência da elite ocidentalizada e mubarakizada do país. Essa elite conseguiu, através de boicote, propaganda e mobilização de grupos descontentes com o governo da MB, impedir que Morsi conseguisse governar o país. Alie-se isso ao fato de que Morsi não é um politico experiente e deixa muitíssimo a desejar em termos de qualquer aptidão para propor e garantir as mudanças que o momento revolucionário exigia e temos que o governo da MB no Egito pós-Mubarak já estava morto antes mesmo de ter iniciado. Primeiramente, como relatou Mohamad Elmasry, em artigo publicado na Jadaliyya (Unpacking the Anti-Muslim Brotherhood Discourse 28/06/2013) a maciça campanha de propaganda anti-Morsi e anti-MB, orquestrada por membros-chave da oposição liberal e secular do Egito, além de aliados do antigo regime, e colocada em prática por donos de poderosas empresas de comunicação da era Mubarak, criou um conjunto de mitos e gerou uma série de distorções de fatos que estão no coração da insatisfação popular com o governo da MB. Dentre elas destacam-se as supostas ações de milícias da MB e a irmandadização da política egípcia, além do suposto apoio dos Estados Unidos e de Israel ao governo dos Muslim Brothers. Uma das maneiras encontradas pela máquina de propaganda da oposição egípcia para retratar os membros da MB como violentos, retrógrados e, por que não, terroristas, foi difundir o mito (criado durante a era Mubarak) de que o partido tinha milícias operando pelo país, as quais buscavam garantir, pela força, que as decisões do governo (supostamente) islâmico de Morsi fossem respeitadas. Ora, e aqui eu faço minhas as palavras de Elmasry, os acontecimentos do ano passado indicam que a MB tem sido muito mais vítima do que promotora de violência. Pelo menos trinta escritórios da MB foram incendiados ou destruídos, e alguns de seus membros foram mortos – ou queimados vivos. Até mesmo ativistas liberais têm rechaçado esse mito, rendidos pelas evidências que demonstram que os membros da MB são basicamente cidadãos educados e de classe média que não possuem qualquer tipo de treinamento militar. Quanto a suposta irmandadização (akhwana) da política egípcia, essa merece uma discussão mais detalhada. Segundo esse mito, desde que assumiu o poder, Morsi nada mais fez do que colocar membros da MB no poder e de confiar neles, e apenas neles, a maior parte dos cargos políticos relevantes no país, excluindo os demais grupos do processo político egípcio. Esse mito pode ser derrubado com apenas dois dados: 1) apenas 10 dos 27 governadores do Egito e apenas 11 dos 35 membros do gabinete presidencial são oriundos dos quadros da MB. Ou seja, grosso modo, a MB tinha uma representação política inferior a 35% no país; 2) Morsi ofereceu vários cargos governamentais para políticos da oposição, mas eles declinaram, na maior parte das vezes. Conforme explica Elmasry, os políticos de oposição que recusaram as posições no governo oferecidas por Morsi o fizeram por não querer fazer parte de um governo da MB e/ou por medo de que seria difícil fazer qualquer trabalho de qualquer envergadura frente à campanha anti-MB em curso no país. Elmasry relata que o vice-presidente do partido liberal Ghad al-Thawra, Mohamed Mohie El-Din, confirmou publicamente que foi oferecida a ele a posição de primeiro-ministro mais de uma vez pelo presidente Morsi, mas ele sempre recusou. Ainda, o fundador do Movimento 6 de Abril, Ahmed Maher, foi convidado por Morsi para assumir a posição de conselheiro presidencial, mas declinou. Finalmente, alguns dias após assumir a presidência, Morsi convidou o então ex-candidato a presidência, Hamdeen Sabbahi, para ser vice-presidente, mas ele recusou. O (agora ex-) primeiro-ministro egípcio, Hesham Kandil, que não é membro da MB ou de qualquer partido islâmico, também afirmou publicamente, diversas vezes, que ofereceu vários postos ministeriais para diversas figuras da oposição, mas que eles sempre recusavam, dando a entender que queriam que as coisas “acalmassem um pouco” antes de assumir qualquer compromisso junto ao governo. No seu discurso de 26 de junho, Morsi também disse que ministros do governo anterior foram convidados a permanecer em seus cargos, mas eles (adivinhem?) recusaram. Dadas essas circunstâncias, não é de estranhar que Morsi tenha tido de recorrer a membros e simpatizantes da MB para poder governar o país. Esse boicote da oposição ao governo da MB se estendeu para a redação da nova constituição (agora suspensa por ordem da SCAF). Aqueles que discordavam de pontos específicos do documento, especialmente os liberais, ao invés de levar as discussões à exaustão, simplesmente se retiraram delas. Morsi, então, em comunicados oficiais que estão devidamente documentados, convidava esses membros da assembleia constituinte responsável pela elaboração da constituição a voltarem para que esses pontos problemáticos pudessem ser melhor discutidos, mas muitos se recusaram. Segundo o vice-presidente do partido liberal Ghad al-Thawra, alguns membros da assembleia pareciam estar prontos para se retirar desde o começo: “algumas pessoas se retiravam ao entrar na assembleia. Sua atitude parecia ser ‘bom dia, estou me retirando’”. Esse mesmo membro do partido liberal denunciou publicamente que, muitas vezes, ele era o único representante não-islâmico presente nas sessões que desenvolveram o processo de elaboração da constituição. Finalmente, Mohie El-Din também denunciou que, naquelas seções em que os membros de partidos não-islâmicos se dignificavam a comparecer, eles ficavam não mais de “dez minutos” e se então se retiravam. Dadas essas circunstâncias, é lógico que grupos não-islâmicos tiveram pouca influencia na elaboração da nova constituição egípcia que, diga-se de passagem, foi aprovada por mais de 60% dos eleitores (que compareceram as urnas) do país. Ainda no que tange aos mitos criados pela máquina de propaganda anti-MB da oposição, aquele mais prevalente e prejudicial, na opinião de Marc Lynch (ver Downfall in Cairo 03/07/2013 Foreign Policy) é aquele que afirma que os Estados Unidos apoiaram a MB e Morsi. Esse argumento foi levantado inclusive por elementos mais críticos da imprensa internacional que afirmavam que tanto os norte-americanos quanto os isralenses estavam bastante felizes em trabalhar com islamistas “domados” e que esse era o tipo de governo que eles passariam a incentivar na região. Na verdade, se algum grupo recebe apoio dos Estados Unidos esse é o exército egípcio, não a MB (opinião de Lynch da qual eu compartilho). E é por isso que pode-se afirmar, sem dúvida de errar, que os militares nunca entregaram o poder de fato para os civis, nem quando Morsi assumiu a presidência em Junho de 2012. Para analistas como Hesham Sallam, a base política do governo de Morsi foi um pacto entre a MB e SCAF, no qual o primeiro controlava a presidência e os sectores da burocracia que não ameaçam diretamente os interesses dos militares enquanto esses últimos mantinham seus privilégios colossais, incluindo um vasto império econômico, mantido fora de qualquer fiscalização por parte da população civil (ver Down with military rule … again? 02/07/2013 Jadaliyya). Morsi errou, e muito, no seu primeiro ano de governo, mas o maior de seus erros foi ter confiado que desenvolveria com os militares uma relação entre iguais. O fato de Morsi ser o primeiro presidente egípcio não oriundo das forças armadas do país o colocava em uma posição na qual ele sentia que deveria “agradar” os militares, mostrando-lhes que uma parceria entre eles e a MB poderia ser desenvolvida. Assim, conforme relata Hesham Sallam, em abril passado, quando Morsi recebeu um relatório oficial que denunciava o envolvimento de líderes militares no assassinato e tortura de revolucionários, ele se recusou a agir. Em vez disso, ele adulou líderes militares seniores com promoções e rejeitou o que ele caracterizou como “insultos” contra as Forças Armadas egípcias. A subserviência de Morsi ao oficialato egípcio garantiu que nenhuma medida fosse tomada de modo a reformar o setor de segurança do país e o establishment militar, o que fez com que, durante o breve governo de Morsi, os militares se mantivessem acima da lei. Mas então por que os militares resolveram depor Morsi? Na verdade, eles não decidiram, foram os milhões e milhões de egípcios protestando nas ruas que levaram os militares a tomar essa decisão ou, nas palavras de Sallam, “o abandono do pacto com a MB por parte dos militares é testemunha do poder que a mobilização popular revolucionária decentralizada acumulou ao longo do ano passado [de governo Morsi]”. Essa assertiva contradiz o que foi dito antes? De modo algum. O boicote, a propaganda e a mobilização de grupos descontentes com o governo da MB por parte da oposição, aliada a um péssimo gerenciamento da crise por parte de Morsi, gerou as condições que levaram milhões de egípcios às ruas entre 26 de junho e 03 de julho passados. Contudo, o que esses egípcios queriam, assim como aqueles 22 milhões que assinaram a petição do movimento Tamarod para a renúncia de Morsi, eram eleições presidenciais antecipadas, não um governo de militares (algo que não irá acontecer, segundo promete a SCAF, mas que pode vir a ocorrer, conforme advertem alguns analistas). Aliadas a irresponsabilidade da oposição e ao oportunismo dos militares está o desdém com que muitos egípcios trataram o processo eleitoral democrático que levou a vitória da MB no país. Lynch nos convida a imaginar o que teria acontecido se a mesma massa humana que saiu às ruas em 30 de junho, nas manifestações que precipitaram a queda de Morsi, tivesse comparecido em mesmo número para votar contra os candidatos da MB nas eleições parlamentares. Tal parlamento, sustenta Lynch, teria criado o primeiro equilíbrio genuíno de poder entre instituições na história egípcia. Não tendo sido esse o caso, o Egito corre o risco de ficar preso a ciclo sem fim de governos falidos, intervenções militares e levantes populares – sentencia Lynch – não necessariamente nessa mesma ordem – complementa a autora desse texto. “A intervenção militar é uma admissão do fracasso da classe politica egípcia como um todo” adverte Lynch, e celebrar o golpe perpetrado contra o primeiro governo democraticamente eleito da história do país é admitir que a democracia egípcia também está fadada a fracassar. Silvia Ferabolli é doutora em Política e Estudos Internacionais pela School of Oriental and African Studies – SOAS, University of London. Membro do NUPEG – Núcleo de Pesquisa em Estudos Globais. Professora de Relações Internacionais da UniRitter Porto Alegre ([email protected]).
Posted on: Mon, 15 Jul 2013 01:21:24 +0000

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