Sobre a "valsinha" "Chico recebeu a música de Vinicius na - TopicsExpress



          

Sobre a "valsinha" "Chico recebeu a música de Vinicius na Argentina, onde o compadre fazia um show com Toquinho. Voltou com a fita para o Brasil e, tempos depois, remetia a letra pelo correio. Vinicius respondeu propondo algumas alterações, inclusive no título, que a seu ver deveria ser "Valsa hippie": Mar del Plata, 24-1-71 Chiquérrimo: Dei uma apertada linda na sua letra, depois que v. partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive [...] Mas como v. me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se v. concorda com as modificações feitas. Claro que a letra é sua, eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes o cara de fora vê melhor estas coisas. Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de "Valsa hippie", porque parece- me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que você acha? Valsa hippie Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar Olhou-a de um modo mais quente do que comumente costumava olhar E não falou mal da poesia como era mania sua de falar E nem deixou-a só num canto: pra seu grande espanto, disse: Vamos nos amar Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar E pôs seu vestido dourado cheirando a guardado de tanto esperar Depois os dois deram-se os braços como a gente antiga costumava dar E cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a bailar E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais Que o mundo compreendeu E o dia amanheceu em paz. A resposta de Chico, embora respeitosa, revelava que o compositor adquirira traquejo para sustentar suas opiniões mesmo diante de nomes como Vinicius de Moraes: Rio, 2 de fevereiro [sem o ano] Caro Poeta, Recebi as suas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o "Apesar de você". Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua, e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gessy, e se não gostar l...-se, ou f..-me eu. — "Valsa hippie" é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí, "Valsa hippie", ligado à filosofia hippie como você o ligou, é um titulo perfeito. Mas hippie, para o grande publico, já deixou de ser a filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo.Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippie. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda. Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou xingou mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar. Convidou-a pra rodar eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar, que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e o tesão da trepada final, "pra seu grande espanto", você tem razão, é melhor que "pra seu espanto". Só que eu esqueci que ia por itens. Vamos lá: — Apesar do Orestes (vestido dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. É gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao "ousar", que ela não queria por causa do marido chato e quadrado. Escuta, ó poeta, não leve a mal a minha impertinência, mas você precisa estar aqui para sentir como a turma gosta, e o jeito dela gostar desta valsa, assim à primeira vista. É por isso que estou puxando a sardinha para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, também dificultam um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos. — Ainda baseado no argumento acima, prefiro o abraçar ao bailar. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe. — A terceira é que mais me preocupa. Você está certo quanto ao "o mundo" em vez de "a gente". Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso, onde você diz "e cheio de ternura e graça" em vez de "e foram-se cheios de graça". Agora estou pensando em retomar uma ideia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer "Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar". Só tem o probleminha da junção "em-estado", o em-e numa sílaba só. Que é o mesmo problema do começaram-a. Mas você me disse que o probleminha desaparece, dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado "começaram a se abraçar" sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente. [...] Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão. Vinicius não jogou a letra no ralo, e a canção foi lançada inicialmente em compacto e depois integrou o LP Construção, de 1971." (Wagner Homem. Histórias de canções : Chico Buarque -- São Paulo : Leya, 2009.
Posted on: Thu, 25 Jul 2013 11:20:59 +0000

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