Um certo Oriente: imagem e anamnese | de Susana - TopicsExpress



          

Um certo Oriente: imagem e anamnese | de Susana Scramim Inelutável modalidade do visível (ineluctable modality of the visible): pelo menos isso se não mais, pensado através dos meus olhos. Assinaturas de todas as coisas estou aqui para ler, marissêmen e maribodelha, a maré montante, esta votinas carcomidas. Verdemuco, azulargênteo, carcoma: signos coloridos. Limites do diáfano. Mas ele acrescenta: nos corpos. Então ele se compenetrava deles corpos antes deles coloridos. Como? Batendo sua cachola contra eles, com os diabos. Devagar. Calvo ele era e milionário, maestro di color che sanno. Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiáfano. Se se pode pôr os cinco dedos através, é porque é uma grade, se não uma porta. Fecha os olhos e vê.1 Fechar os olhos para ver ou buscar em apenas alguns vestígios o esboço de uma história são movimentos em direção ao limite do diáfano nos objetos. O limiar desse estado diáfano transforma os volumes do campo de visão em objetos-relação, em objetos visuais. Em Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, ocorre o trânsito entre a materialidade lingüística e a imaterialidade visual de uma coleção de objetos e, para perceber o que essa coleção pode significar, adentra-se numa zona limítrofe entre o ver e o falar: “os limites do diáfano”. Stephen Dedalus, personagem principal do Ulysses de James Joyce ultrapassou esse limite e quis ver com algo mais do que aquilo que seus olhos mostravam. Em Relato de um certo Oriente, os objetos colecionados sinalizam uma perda, a destruição de um mundo, o desaparecimento dos próprios objetos ou dos corpos que encenaram uma história. Essa é a história de uma família de imigrantes árabes na Amazônia brasileira ou a tentativa de sua reconstrução, cuja matriarca, Emilie, desencadeia o movimento entre os parentes, inclusive o da reconstituição da história familiar, já que a narradora que orquestra as vozes narrativas é a filha adotiva de Emilie. A jovem narradora esteve ausente durante muitos anos do convívio da família por ter estado internada numa clínica de tratamento psiquiátrico. Desde a primeira página do romance a narradora se prepara para o reencontro com sua mãe, que no fim ela não encontra, ou melhor, a reencontra morta, assim, efetivamente, perdendo sua mãe. Com base na formulação de Julia Kristeva que o estrangeiro é aquele que perdeu sua mãe2 seria possível pensar que o ponto de vista da narrativa no Relato de um certo Oriente é fundado num exílio conceitual dado pela consangüinidade negativa, pelos anos de ausência do convívio da mãe à perda efetiva da mãe. Nesse sentido, o que se reconstrói não é uma história de estrangeiros, mais do que isso, essa é uma história de exilados, de homens e mulheres que perderam uma cultura, uma língua, uma religião, e buscam desesperadamen reencontrá-la, nos objetos, nos rabiscos, nas marcas de café deixadas no fundo das xícaras, nos desenhos de crianças estampados nas paredes da casa e nos depoimentos baseados na memória de pessoas que ainda trazem consigo os vestígios dessa cultura. Essa história estará marcada por uma espécie de anacronismo porque, além de narrar o que já é passado, obedecerá a um procedimento de reconstituir esse passado com base em imagens, em vestígios, em traços de sentimento e caráter de pessoas que já não são mais as mesmas. Essa é uma história que foi reconstruída com base em sua própria ruína. Alegoria maior disso materializa-se na descrição, feita no presente da narrativa, do jardim e da casa da família em ruínas. Dessa forma, não seria demasiado dizer que o Relato de um certo Oriente é ele mesmo, em sua materialidade narrativa, um objeto que fala da perda, da destruição e do desaparecimento de um mundo com seus objetos e corpos. Os volumes que aparecem no texto são portadores de um vazio existencial uma vez que eles já não são mais o que eram, foram esvaziados de seus conteúdos anteriores. Contudo, esse vazio se mostra relacional, ele não é cínico, pois a perda não é tratada como um ato definitivo, e sim como um movimento em que o objeto perdido desaparece e volta a reaparecer intermitentemente proporcionando surpresa e espanto por parte de quem o executa. Esse movimento encerra uma teoria da história como repetição, no entanto, uma história que nunca será a mesma. Nietzsche enxergou esse movimento através da perspectiva histórica do eterno retorno. Ao estudar os problemas da diferença, do sentido, do desejo e da multiplicidade Gilles Deleuze reivindica o eterno retorno como aquilo que sobra, aquilo que se “seleciona”, a forma extrema, a diferença, no movimento da história. O extremo não é a identidade dos contrários, mas, antes, a univocidade do diferente, a forma superior não é a forma infinita, mas, antes, o eterno informal do próprio eterno retorno através das metamorfoses e das transformações. [...] O gênio do eterno retorno não está na memória, mas no desperdício, no esquecimento tornado ativo.3 Walter Benjamin, num sentido paralelo, articulou uma teoria da história como impossibilidade de transmissão da tradição, quer seja, como impossibilidade de repetição na repetição, quando correlaciona sua teoria da história com a teoria da experiência. Giorgio Agamben, lendo a teoria da história de Benjamim, soube evidenciar essa relação interna quando observou a importância da categoria de infância como produtora de significantes instáveis e perviventes na relação entre experiência e história na obra do filósofo alemão. De modo que se observamos ahora nuestra cultura, que cree haberse librado de esos problemas y haber resuelto de manera racional la transmisión de los significantes del pasado al presente, no tardaremos mucho en reconocer las ‘larvas’ en los Nachleben y en las supervivencias de los significantes del pasado, despojados de su significado original.4 Desse modo, continua Agamben, la verdadera continuidad histórica no es la que cree que se puede desembarazar de los significantes de la discontinuidad relegándolos en un país de los juguetes o en un museo de larvas: (que a menudo coinciden actualmente en un solo lugar: la institución universitaria), sino la que los acepta y los asume, ‘jugando’ con ellos, para restituirlos al pasado y transmitirlos al futuro.5 Nesse sentido, Raul Antelo, em Genealogia do Vazio, sublinhou a respeito do Relato de um certo Orienteque “a ficção moderna é intraduzível, mas ainda assim se ensaiam intercâmbios vãos ante a impossibilidade de uma transferência efetiva, de uma equivalência necessária, mas ao mesmo tempo impossível”. No mesmo diapasão, a narradora do Relato, perto do fim de sua saga, que poderia ser definida como a de traduzir/transferir a experiência de uma tradição acumulada pela família, conclui que “remar era um gesto inútil: era permanecer indefinidamente no meio do rio”6. Essa maneira de refletir sobre a transmissão da experiência encena uma teoria da história que pode igualmente ser encontrada em outro texto de Milton Hatoum, num verso de um poema: “remar tornou-se um verbo estático”7. Vale ressaltar que se passeia sem meta para captar e registrar o que está a sua volta, contudo há uma constatação de um vazio que é paralisante somente em seu primeiro momento, uma vez que ele é percebido a partir de imagens em movimento. Dessa forma, esse passear é gerador de uma passividade ativa, daí que um jogo é praticado cujos movimentos acontecem justamente onde eles não são esperados. A via de mão dupla do visual, ou o jogo do esvaziamento Todo jogo obedece a uma estrutura. Flora Süssekind chamou a atenção para um certo ritmo, uma certa regularidade nos movimentos narrativos, alternância nos focos narrativos ou na “multiplicação de monólogos” no livro Relato de um certo Oriente, ao que a crítica carioca denominou de “jogo de paciência”8. Esse jogo implica em suas próprias regras uma perda iminente. Quando o baralho for reconstituído na sua totalidade, o objeto reconstituído, o baralho com todos os seus naipes, com todas suas imagens, será apenas mais um baralho, mais um objeto, mais uma história, ao final perderá sua complexidade, tornando-se um objeto banal, vazio de sentido, completo. No entanto, esse não parece ser o jogo que o movimento da narrativa em Relato de um certo Oriente executa. Esse outro jogo estaria ainda baseado no ocultamento e desocultamento de detalhes significativos para a organização do resultado final, mas as missivas que a narradora reúne, juntamente com outros objetos tão importantes quanto as cartas, para compor sua história, não são a evidência de que se trata de um jogo de cartas de baralho ou de um jogo de paciência. Os objetos, inclusive alguns mais significativos que as cartas – o desenho de criança na parede, as marcas do café deixadas na xícara, o relógio, as fotografias, encontram-se ligados por um fio condutor desse jogo que funciona como um carretel que uma criança vê, toma-o nas mãos e, ao tocá-lo, não quer mais vê-lo. Atira-o longe: o carretel desaparece atrás da cortina. O jogo escolhido como estratégia narrativa em Relato de um certo Oriente não é uma malfadada partida de paciência e, dessa forma, não há os constrangimentos por parte do jogador que teria sido “obrigado a interromper [o jogo], não sem uma explicação envergonhada, já que havia gente olhando”9. Trata-se de um outro jogo marcado pela alternância entre uma ausência e uma presença, por uma perda e, logo após, por um ganho. Os movimentos do jogador constituem uma série. Série essa na qual se reconhece a cena paradigmática descrita por Freud em Além do princípio do prazer, em que seu neto de 18 meses de vida, é observado a brincar de puxar e rolar um carretel que desaparecia e que quando reaparecia era saudado com um alegre Da (Eis aí !). Georges Didi-Hubermann, ao comentar essa análise de Freud, chama a atenção para o movimento de retorno do carretel ao campo de visão do jogador. Um retorno de carretel que, como um peixe surgido do mar puxado pelo anzol, cria um outro ponto de vista porque já não se sabe quem olha, se a criança que puxou o carretel ou se o carretel que olha, carregado de outros sentidos que está depois de sua reaparição. Esse movimento, sublinha ainda Didi-Huberman, “abre na criança algo como uma cisão ritmicamente repetida. Torna-se por isso mesmo o necessário instrumento de sua capacidade de existir, entre a ausência e a presença, entre o impulso e a surpresa”, e completa mais adiante, apontando já para uma caracterização dialética das imagens, “quando o que vemos é suportado por uma obra de perda, e quando disto alguma coisa resta.”10 Em Relato de um certo Oriente, há, de um lado, a estrutura do texto que se caracteriza pela série, ou seja, a história da família de Emilie é composta por uma seqüência de relatos para cada um dos quais há uma voz narrativa particular. E de outro, há um modo de operar essa estrutura que ultrapassa a mera alternância de focos narrativos das histórias, ou melhor, a alternância de perspectiva acontece também entre o leitor do relato e o leitor do tecido interno de cada uma das histórias relatadas porque se inscreve, no processo de rememoração da história, uma outra série: a das imagens. Anamnese aqui se desvincula das abordagens puramente historicistas bem como das puramente subjetivas. A imagem recebe um tratamento crítico no melhor estilo benjaminiano. As imagens são tratadas como documentos pessoais de cultura que marcam a passagem de ida e de retorno de um tempo através das ruínas de vidas humanas. As vidas foram perdidas. Como já se disse aqui, se trata do Relato de uma perda ou de várias. Há neste romance o relato de várias mortes. A morte ali é uma presença forte, quase um personagem a constituir ausências. A mais significante dessas mortes com certeza será a de Soraya Ângela, personagem para quem Milton Hatoum escreveu um poema em separado do livro e que ainda permanece inédito. É um poema da morte que, sintomaticamente, foi intitulado como “Olhos da memória”. O luto pela morte da menina desencadeia um processo de anamnese para o qual o olho se torna o elemento irradiador de sentido. Nesse processo, a menina era somente olho, porque era um ser inacabado, muda e surda, aquele ser era um olho, era pura imagem. Um olho para o qual convergiam todos os olhos, para o qual convergiam todos os desejos. Não obstante, a peça de Schubert, Der Tod und das Mädchen, A morte e a menina, é introduzida como mais um elemento de estrutura do texto no relato da saga familiar. A peça é citada pela narradora enquanto conversava com Dorner depois de um reencontro casual na beira do rio. Reencontro que desencadeia mais anamneses marcadas por imagens críticas, imagens em movimento, no entanto, imagens marcadas pela singularidade. No ir e vir das imagens configura-se o movimento de presenças e de ausências, o jogo de carretel. No “Lieder” de Matthias Claudius, que foi posteriormente adaptado para a peça para quatro cordas de Schubert, pode-se perceber claramente o movimento de recusa e aceitação, de vai e vem do discurso da morte que deseja levar a menina e desta que se esquiva, mas ao final acaba sendo levada pela morte. O diálogo da menina com a morte e o luto pela morte da menina são geradores de mais rememorações. Assim, aquilo que se perde estrutura o relato, a história. Nesse sentido, poderia ainda dizer que a morte é uma figura no Relato de um certo Oriente, figura essa que também se constitui em imagem, ou melhor, em ausência de imagem. O leitor não encontrará, configurada na materialidade do texto, nenhuma das cenas da morte, apenas sua ausência. A cena da morte da menina é apenas descrita no seu entorno, da mesma forma o suicídio de Emir, descrito pela fotografia que Donner tirou dele pouco antes de seu suicídio no rio Negro, a morte de Emilie também não será enfocada diretamente. No fim das contas, será preciso convir que para além da morte como figura iconográfica, é de fato a sua ausência que rege esse balé desconcertante de imagens sempre interditas. A ausência é considerada aqui como motor tanto do desejo – da própria vida – quanto do luto – que não é a morte mesma (isso não teria sentido). A morte não importa, ela nada produz, contudo, o luto desencadeia um trabalho psíquico naquele que se confronta com a morte e movimenta o olhar com esse confronto. Dessa forma, o relato da perda, os seus volumes vazios – os túmulos vazios – transformam-se em figuras, em objetos doadores de sentidos. Sendo assim, quando se opera a leitura desses volumes, encontra-se neles uma fenda por onde algo olha para o leitor. No Relato de um certo Oriente as imagens desencadeiam, mais do que o verbo, a anamnese em homens e mulheres que se ausentaram de sua casa, de sua família, de sua mãe. São exilados, estrangeiros. Interessa lembrar novamente da bela imagem que Julia Kristeva articula para falar do estranhamento intrinsecamente familiar que o sentimento de exílio pode provocar: uma espécie de estranhamento para aquilo que seria mais íntimo em nós mesmos. “O estrangeiro, portanto, é aquele que perdeu a mãe.” A teórica francesa faz essa afirmação baseada no entendimento de que há uma ferida secreta, mas familiar, que o próprio estrangeiro desconhece, arremessando-o em um vagar constante. Essa ferida, segundo Kristeva, é um sentimento de não-estar à vontade ou mesmo um sentimento de ser mal-amado. Entretanto, “o desafio emudece a queixa”, ressalta ainda a autora, e, fixado a esse outro lugar, tão seguro quanto inabordável, o estrangeiro está pronto para fugir. Nenhum obstáculo o retém e todos sofrimentos, todos os insultos, todas as rejeições lhes são indiferentes na busca desse território invisível e prometido, desse país que não existe mas que ele traz no seu sonho e que deve realmente ser chamado de um além. O estrangeiro, portanto, é aquele que perdeu a mãe.11 A figura do exílio é bastante recorrente no Relato. Emilie e Emir remontam o fraterno exílio, ambos violentaram um ao outro quando Emir a arrancou do convento em Ebrim e quando Emilie o arrancou de Marselha; tio Hanna e seu sobrinho, o marido de Emilie, do Líbano para um eterno exílio na floresta úmida. Samara Délia, o interno exílio no coração da família; a filha adotiva de Emilie passa 20 anos numa clínica para tratamento psiquiátrico; Hakim, o filho amado de Emilie, o ser de exceção, o mais significativo exílio da família, um exílio permitido e sofrido pela mãe, mas que ganhou conotações do espírito trágico, quando a própria mãe admite que morrera um pouco para que o filho pudesse sobreviver. São personagens desencantados em função de sua incompletude, estão longe da mãe, da mátria, da língua, mas possuidores de um desejo imenso de restituir o lócus uterino. Eles executam um tipo de movimento reacionário em direção à plenitude. Essa busca, entretanto, revela-se inglória, eles não conseguem ser nem europeus, nem americanos; nem ocidentais, nem orientais: isto porque são puramente desejo. O desejo, neste caso, é matéria e movimento, mater e crisis, vida e luto em tensão contínua. A figura do alemão exilado na Amazônia, Gustav Dorner, é emblemática desse puro desejo que impede a restauração conservadora. A forma pela qual Dorner rejeita e se esquiva do Ocidente, da Europa, não é nem violenta nem política nem tão ascética como a narradora do Relato afirma, “Dorner, esse morador-asceta”. A forma da sua rejeição é exatamente uma deriva, um movimento do desejo. Ao assumir Manaus como sua residência, o turista alemão aprendiz não tem a irresponsabilidade ética característica do turista comum, mas também não possui a responsabilidade civil e política do cidadão. Ele se coloca entre dois estatutos fortes numa posição intermediária, mas dura. Mistura de precariedade e eternidade. O residente é, em suma, um turista que repete seu desejo de ficar. Ao residente que possui um bom conhecimento do lugar, dos costumes e da língua é permitido satisfazer o desejo que o moveu até lá: o desejo de reencontrar a mãe. No entanto, Dorner não se completa na Amazônia, seu vagar no presente da narrativa ainda é uma deriva, visto que a narradora o reencontra andando perto do rio e não o reconhece à primeira vista, mas a figura de Dorner lhe desperta o olhar: “alguém que visivelmente não era turista nem da terra, uma figura vestida de branco, altíssima, caminhando de uma forma meio desengonçada como se procurasse algum apoio.”12 Essas figuras do exílio instauram um jogo entre o esquecer e o lembrar de coisas que foram obliteradas tanto pelo tempo como pela moral burguesa familiar do final século XIX num Líbano colonial, ponto de partida da história da família de imigrantes e sua vinda para a Amazônia. Hakim descreve as fotografias nas quais sua mãe, Emilie, substitui o relato verbal da vida da família pela linguagem icônica. Um outro jogo se estabelece na relação amorosa dos dois, em vez de metáforas e hipérboles, luz e sombra; ausência e presença. Emilie narra silenciosamente 25 anos da vida da família para Hakim. O silêncio da mãe presentifica para o filho uma profusão de significados. A ausência de um discurso verbal não anula o processo de significação. Ao contrário, é essa ausência que, paradoxalmente, engendra o discurso, afirmando-se, assim, o caráter de incompletude de toda linguagem. As fotografias são um discurso aparentemente neutro, entretanto ele está implicitamente carregado de pontos de vista, de focos determinados racionalmente por seu autor, Emilie. Mais luz, menos luz, fios de cabelos prateados ou pretos e, depois de alguns anos, prateados e pretos; menos sombras, mais sombras, rugas nascendo na lisa face; poltronas desocupadas, trajes negros, duas alianças no mesmo dedo, tudo disturba. Giorgio Agamben, analisando cinco fotografias e um daguerreótipo de Mario Dondero, dirá que la fotografia è per me in qualche modo il luogo de Giudizio Universale, essa rappresenta el mondo como appare nell´ultimo giorno, nel Giorno della Collera. Non è certamente una questione di soggetto, non intendo dire che le fotografie che amo sono quelle che rapprasentano qualcosa di grave, di serio o perfino tragico. No, la foto può mostrare un volto, un oggetto, un evento qualunque. [...] quella che se potrebbe chiamare la flanerie (o la “deriva”) fotografica: si passeggia senza mete e si fotografa tutto quello che capita. Ma “quello che capita” – il volto di un pellegrino arabo in viaggio, la vetrina di un negozio a Parigi – è convocato, è citato a comparire nel Giorno del Giudizio. A fotografia no Relato de um certo Oriente, no lugar de fazer os personagens reinstituírem suas origens substantivas perdidas, os impele a mais derivas, é como se cada imagem dos objetos do cotidiano familiar gravada nas fotografias enviadas por Emilie para Hakim o fizesse ficar estático para então passear pela vida inteira de lembranças que daquelas imagens saíssem. Estaria então como no dia do Juízo Final, o ser humano frente a frente, olho no olho com sua vida. Num certo sentido, seria esse um dos sentidos para a imagem: “remar se tornou um verbo estático”. O anacronismo da luz, o negativo fotográfico e a teoria da história A leitura que Hakim faz das fotos enviadas por Emilie é marcada pela reflexão moderna sobre a história, quer dizer, nela está presente o diálogo entre cultura e a natureza, entre técnica e magia. O mesmo princípio que estrutura a leitura da narradora constrói também a relação do Relato com a história. Tal relação pode ser encontrada na forma a partir da qual o narrado é revelado. O tempo no romance, que é uma maneira de estabelecer algum tipo de relação com a história, concretiza-se na própria constituição da narração. A narradora encontra-se materialmente em outro tempo que não é o do narrado, contudo há um imenso desejo de recuperar aquilo que, a princípio, se encontra perdido. Para realizar esse desejo ela utiliza-se, entre outros recursos, do procedimento de descrever as imagens registradas nas fotografias. Há uma transcodificação de linguagens, passa-se da imagem para a palavra. No texto Uma pequena história da fotografia, Walter Benjamin alerta para uma combinação de opostos inerente à arte de fotografar. Diz Benjamin, “a técnica mais exata pode conferir aos seus produtos um valor mágico”13. A diferença entre técnica e magia, segundo o autor, passa, a partir da fotografia, a ser uma variável histórica. A foto, espaço conscientemente elaborado pelo homem, atua num outro de natureza bastante diversa : o espaço do inconsciente. Com a técnica fotográfica surge a possibilidade de controle da consciência da história através do tempo, bem como dos aspectos subjetivos dessa mesma consciência histórica. Dessa outra percepção do tempo brotam as imagens, os aspectos “fisionômicos”, termo caro a Benjamin. Trata-se de imagens de outros mundos. Na análise dos aspectos fisionômicos do passado o autor pôde prever a popularização do ato de bater fotos, comparando-o ao ato de “a-bater” animais. Entretanto, ressalta a diferença existente entre a fotografia enquanto mero suvenir de caçador e a arte da fotografia. Nesse ponto as visões de Roland Barthes e Walter Benjamin sobre a fotografia confluem. Para ambos a fotografia como arte possui um estatuto particular, sendo detentora de um outro código conotativo, o qual se distinguiria do código meramente verbal. O ensaísta francês sublinha justamente o caráter histórico, precisamente cultural, do código fotográfico14. Porém, porque a linguagem da fotografia é cultural, a ambigüidade que advém de uma foto arranca-lhe a imposição instrumental de simplesmente ratificar o que ela representa. Há na fotografia uma certa dissolução da linha limítrofe entre a certeza e o esquecimento. Certeza essa, segundo Barthes, que nenhum escrito pode dar, uma vez que toda linguagem é, por natureza, ficcional. Este é um paradoxo que supõe a coexistência de substâncias, a princípio opostas, mas que não se anulam: a certeza e o esquecimento. Elaborar um relato no qual a certeza e o esquecimento não devem ser tornados nulos, é uma tarefa que se impõe aos narradores do Relato de um certo Oriente. É possível encontrar nas palavras de Hakim ecos dessa concepção de fotografia, quando narra a experiência de receber notícias da mãe por meio de imagens registradas num cartão. Porque era a revelação de um momento real e de uma situação palpável o que mais me impressionava na fotografia. Sentia-me ali, juntinho de Emilie, ocupando a outra cadeira de vime, atento ao seu olhar, à sua voz que não me interrogava (…) A voz e a imagem me fazem recordar um mundo de desilusões.15 Nessas fotos encontram-se juntos os aspectos analisados por Walter Benjamin na arte de fotografar: técnica e magia. A imagem desenlaça um instante da memória, inclusive a voz de Emilie que se ouvia na ausência da própria voz. Encontram-se em conjunção verbo e o ícone no movimento de criação da figura. O objeto que é visto pelo personagem Hakim, a fotografia, parece não pertencer à mesma natureza do objeto meticulosamente preparado pelo fotógrafo ao registrar a cena. De alguma maneira um mesmo objeto é constituído por duas naturezas discursivas que, se não são adversas, por certo seriam diversas: o discurso do real e o do imaginário. Um é constituído conscientemente, a cena registrada pelo fotógrafo. O outro é fruto da leitura do primeiro, da fotografia. No entanto, o que era uma imagem captada pela lente objetiva desencadeou todo um processo de construção de imagens de um mundo subjetivo. Roland Barthes, no livro A câmara clara, diz que há uma identificação entre a fotografia e a vida, entre espaço e tempo, que as fotos criam instantes feitos a golpes de pequenas solidões. As fotos que estão no Relato de um certo Oriente são utilizadas também como recurso do narrador na criação dos instantes talhados no enclausuramento de um sujeito à busca de uma língua liberta do sentido referencial. Instaura-se a possibilidade de conhecer os aspectos fisionômicos de um mundo figurado, repleto de cheiros, cores e sons, que passa a ter existência somente quando é autorizado pelo discurso de um personagem que implicitamente assume a sua fala como apropriação particular desse mesmo universo. Barthes frisa que a fotografia não é “animada”, contudo, ela produz animação no leitor, e é isso o que toda aventura produz. Esse processo anímico desencadeia em um dos personagens-narrador, Hakim, a visão de todo um mundo paralisado à espera de movimento estático. “Remar era permanecer indefinidamente no meio do rio.” Essa frase que não foi proferida por Hakim ecoa nas frases construídas por ele mesmo. Se eu não tivesse olhado para aquela fotografia, poderia abstrair todas as outras, fechar os olhos a todos os retratos enviados para mim ao longo de tantos anos, ou simplesmente recordar através das imagens algo fugidio, que escapa da realidade e contraria uma verdade, uma evidência.16 No Relato de um certo Oriente das imagens formula-se o verbo. Logo no início da narrativa há uma descrição, feita pela filha adotiva de Emilie, de um desenho. Aquilo que seria apenas um ajuntamento de traços feitos pelas mãos primitivas de uma criança remete o leitor a uma gravura de Paul Klee, como bem observou Flora Sussekind17. Era o desenho de um homem remando indefinidamente numa malha de água. Essa imagem passa a ser uma das imagens mais recorrentes do romance. Num outro momento da narrativa, Hakim recorda de um costume de Emilie de ler o destino das pessoas a partir dos traços — os quais formavam desenhos — deixados pelos resíduos de café numa xícara emborcada na bandeja. Nesse procedimento há uma evocação, não da técnica, que está na superfície do ato de fotografar, mas das longínquas forças da magia de que fala Walter Benjamin. No ensaio Sobre la faculdad mimética, Benjamin analisa o processo de descrever imagens, criar significação, a partir da leitura das linhas traçadas na palma de uma mão. Esse procedimento suporia que a língua seria um estágio superior do comportamento mimético e o mais perfeito arquivo de semelhanças não materiais: um meio para o qual emigram sem resíduos as mais antigas forças de produção e recepção mimética, até eliminar as forças da magia18. Descrever a imagem é mudar de código. Tal procedimento tem suas implicações estéticas. Roland Barthes no ensaio Le message photographique19 propõe a descrição de fotografias como uma escrita impossível, tendo em vista que a fotografia por ela mesma possui um princípio analógico com o real, e de que maneira se aplicaria ao mesmo objeto um outro princípio analógico: a descrição? Na descrição de uma fotografia passa-se da denotação para a conotação para chegar-se novamente à denotação. Nesse sentido descrever uma foto resultaria em algo incompleto. Contudo, Barthes chama atenção para um tipo de fotografia que não se coloca no nível da denotação. Estas conteriam em si uma tensa relação de coexistência. Não uma mera confluência de códigos, isto é, o analógico e o retórico, mas sim uma relação dialógica que dá origem à escritura, o que quer dizer que de uma mensagem sem código hegemônico se desenvolve uma história. Sendo assim, como se deve ler no Relato de um certo Oriente a intensa recorrência à descrição de fotografias e de seus aparatos técnicos? São muitos os momentos do texto em que podem ser observados esses procedimentos mágicos dos narradores. A cada compasso da narração, seja lá quem for o narrador, há uma compulsão em rever, organizar, classificar o fluxo ininterrupto de imagens vindas da memória involuntária. Dorner, o fotógrafo que passeia sem metas e fotografa tudo a sua volta, acaba por catalogar e classificar com sua Hasselblad tudo e todos e documenta a realidade circundante. Contudo, inversamente, a realidade não constitui o seu maior interesse. O que mais parece seduzi-lo é a combinação de documentário e ficção, a concretização de estados interiores. Ele compreendeu, a partir desse outro modo de olhar, que todos os seus trabalhos fotográficos eram histórias e que, mesmo sendo histórias verdadeiras, também eram inventadas. Ou então, mesmo que fossem inventadas, também eram verdadeiras. Fotografando, Dorner tinha uma permissão racional para viver outros papéis em sua vida. Na sua atitude de um narrador silencioso, fotografava os rostos da gente da província, chegando bem perto do sentimento dos povos do interior da floresta ou, por acaso, captando o estado de alma de um suicida. A imagem fotográfica possibilita um outro olhar sobre o já visto, apresenta um outro olho que compara. Daqui poderia surgir uma teoria da metáfora não como substituição e sim como sobrevivência e, por extensão, poder-se-ia articular assim uma teoria da história como multidimensionalidade. Com base na técnica do registro negativo de uma imagem estão dadas as múltiplas condições de leitura de um objeto. Tal leitura resultará não na visão daquele objeto, mas num vislumbramento que emerge da relação deste com o olho de quem o olha. Georges Didi-Huberman, a propósito de uma teoria da imagem como serpente histórica, afirma que “o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois.” Quando lançamos nosso olhar de leitores sobre uma foto, percebendo, a partir desse olhar, que algo resta ali que não pode ser reduzido ao silêncio, estamos diante da permanência de alguma coisa que devolve o olhar. Isso seria a infinita possibilidade do objeto, e, naquela possibilidade, se pode vislumbrar uma obra. É nesse sentido que a imagem ultrapassa o caráter do retrato para encontrar um lugar incerto onde o leitor torna-se apto a descobrir inusitados significantes num instante situado no passado. O retrato adquire, dessa forma, um estatuto de figura. Apesar de estar inserida no já vivido, Roland Barthes20 fala da figura como algo caracterizado por uma certa impessoalidade, por um não pertencimento patriótico nem civil e por um anacronismo, cujo efeito é um movimento de desapropriação e de deslocamento dos referentes. Existe algo dessa passagem do retrato à figura, do retrato à obra no Relato de um certo Oriente. Essa passagem acontece por uma recorrente presença de fotografias no relato verbal da narradora, regente do modo singular de ver de cada um dos personagens que assumem o foco narrativo da história que ela quer recuperar. No romance de Milton Hatoum, o que se vê através da recorrência à figura não é a substituição do retrato pelo relato, e vice-versa, no lugar dessa substituição, o que se encontra é a sobrevivência de dois modos de construir uma história não linear e antievolutiva. A utilização recorrente de imagens anuncia este procedimento já que imagem é luz, portanto, imagem é anacronismo, tempo serpenteante, encavalgado e descontínuo. *Susana Scramim é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada e professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina, Foi uma das fundadoras da revista Babel e editora, de 2003 a 2006, da revista outra travessia, do curso de pós-graduação em Literatura da UFSC e dela organizou as edições especiais: De Cunha, Euclides da Cunha e Excesso e Exceção sobre Giorgio Agamben e Georges Bataille. NOTAS 1 J. Joyce. Ulysses (1922), cf. tradução de Antônio Houaiss, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 41- 42. 2 Julia Kristeva, Estrangeiros para nós mesmos, trad. Maria Carlota Gomes, Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 3 Gilles Deleuze, Diferença e repetição, trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.104-105. 4 Giorgio Agamben. Infancia e Historia, trad. do italiano de Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2001, p. 126. 5 Idem, p. 127. 6 Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente. 1ª Edição 1989. São Paulo: Companhia da Letras, 1994, p.124. 7 Milton Hatoum, Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas. São Paulo: Diadorim, 1979. 8 Flora Süssekind. “Livro de Hatoum lembra jogo de paciência”. Caderno Letras: Folha de S. Paulo, 29/04/89, p. 6. 9 Conforme a análise de Flora Süssekind em “Livro de Hatoum lembra jogo de paciência”, op. cit. 10 Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha, tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998. p.79-80 11 Julia Kristeva, Estrangeiros para nós mesmos, op. cit., p. 12-13. 12 Milton Hatoum. Relato de um certo Oriente, op. cit., p. 129. 13 “Uma pequena história da fotografia”, em Walter Benjamin, org. e trad. Flávio Kothe. São Paulo: Ática, 1991, p. 219. 14 “Ou a vu que le code de connotation n’était vraisemblablement ni ‘naturel’ ni ‘artificiel’, mais historique, ou si l’on préfrère: ‘culturel’; les signes y sont des gestes, des atitudes, des expressions, des couleurs ou des effets, doués de certains sens en vertu de l’usage d’une certaine société: la liaison entre le signifiant et le signifié, c’est-a-dire à proprement parler la signification, reste, sinon immotivée, du moins entièrement historique. On se peut donc dire que l’homme moderne projette dans la lecture de la photographie des sentiments et des valeurs caractériels ou ‘éternels’, c’est-à-dire infra-ou transhistoriques, que si l’on précise bien que la signification, elle, est toujours élaborée par une société et une historie définies; la signification est en somme le mouvement dialectique que résout la contradiction entre l’homme culturel et l’homme naturel.” Roland Barthes. “Le message photographique”, em OEUVRES COMPLÈTES. Tome 1, 1942-1965, op. cit., p. 946. 15 Milton Hatoum. Relato de um certo Oriente, op. cit., p.105. 16 Idem. 17 Flora Süssekind. “Livro de Hatoum lembra jogo de paciência”, op. cit. 18 “Sobre la faculdad mimética”, em Ensayos Escogidos, trad. H. Murena, Buenos Aires: Sur, 1967. 19 Roland Barthes. “Le message photographique”, em OEUVRES COMPLÈTES, op. cit. 20 Roland Barthes. S/Z, em OEUVRES COMPLÈTES, op. cit. , p. 600.
Posted on: Wed, 17 Jul 2013 10:17:36 +0000

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