Vovó Dolores 9.9 Dolores, 99 Dia 11, mamãe faz 99 anos. Ela - TopicsExpress



          

Vovó Dolores 9.9 Dolores, 99 Dia 11, mamãe faz 99 anos. Ela nasceu em 1914, ano em que começou a Primeira Guerra Mundial. Ela está bem, dentro das possibilidades de quem beira o centenário. Cabeça boa que sempre nos surpreende com tiradas de profundo bom-senso. Gosta de rir junto com a gente e está sempre atenta para as conversas em volta dela. O ouvido não é muito bom, mas ela insiste em saber do que estão rindo ou sobre o que estão cochichando. E a ironia mordaz dos Lustosa, família de seu pai, Crispiniano, continua muito afiada. Antigamente eu achava que aquela música tradicional de David Nasser e Herivelto Martins que se cantava no dia das mães não tinha nada a ver com a minha mãe. Na parte que falava no "avental todo sujo de ovo", a gente não reconhecia d. Dolores. A gente nunca viu mamãe de avental, pois ela até gostava de costurar, mas na cozinha era um desastre. São os primeiros versos que têm a ver com ela: "Ela é a dona de tudo/ ela é a rainha do lar/ ela vale mais para mim/ que o céu, que a terra, que o mar/ ela é a palavra mais linda que um dia o poeta escreveu/ ela é tesouro que o pobre/ das mãos do Senhor recebeu." Tem a ver com mamãe, principalmente a parte que fala no "tesouro" pois foi sempre mãe abnegada, sempre preocupada com os filhos, sempre querendo saber de todos e sempre pronta a socorrer aos que mais precisarem. Nunca foi de muito chamego. Nesses era pródigo o papai. Ela, não, mais silenciosa e de forte presença, se preocupava com nossos estudos, verificava nossos cadernos e cuidava para que nunca nos atrasássemos para a escola. Sua letra bonita estava na capa de papel madeira com que cobria todos os nossos livros e cadernos para melhor conservá-los. O empenho dela e de papai foi para que todos os filhos se formassem e uma de suas frustrações foi a de não ter podido cursar uma faculdade. Moça inteligente e preparada, normalista que se fez professora, o casamento com o belo rapaz do Ceará que foi buscá-la em Cajazeiras, na Paraíba, talvez tenha sido a causa do abandono desse sonho. Ambos, jovens católicos que se conheceram no movimento integralista em que militavam, fizeram casamento baseado no amor e na identidade intelectual e moral. Criou seus treze filhos juntando os salários modestos do marido e dela, numa econômica doméstica rigorosa que priorizou sempre a escola e os estudos em detrimento de qualquer supérfluo. Quando eu era criança detestava que na nossa casa o sabonete e a pasta de dentes fossem os mais baratos que vendiam no mercado. Também não fiquei contente ao descobrir, bem antes de um dos natais de minha infância, escondidos no alto do guarda-roupa, os brinquedos que íamos ganhar: bonecas de plástico, daquelas inteiriças sem pernas e braços articulados como eram as bonecas bacanas. Detestava ter que levar na merenda da escola sempre o mesmo pão com goiabada em vez de dinheiro para comprar pastel e refrigerante na cantina. Ela controlava a dispensa e não gostava que a gente levasse ninguém para comer lá em casa sem antes avisar. Só mais tarde, quando tive minha própria casa, com meu único filho para manter, me dei conta da mágica que ela e papai faziam para dar alimentação, roupa e escola para essa tropa toda. Lembro de uma vez que ela me falou a propósito de algum doce especial: coma com parcimônia. Eu nunca tinha ouvido aquela palavra, mas brinquei dizendo que ia comer e depois ver no dicionário o que era parcimônia. Ela riu, porque sempre teve um extraordinário senso de humor. Até hoje fala pouco, no entanto é capaz de dizer coisas terríveis de tão diretas e sinceras mas sempre engraçadas e pertinentes. Gostamos de provocá-la, pois sabemos que ela também gosta deste tipo de jogo que anima as reuniões familiares. Uma vez, durante um de nossos divertidos almoços de domingo, mostrei a ela o braço todo tatuado do Benoni que havia pouco tempo casara com sua neta, a Silvia, filha da Socorro. Eu disse: "olhaí, mãe, o braço dele". E ela, apurando a vista, mirou a tatuagem e perguntou para a Silvia: "mas você não viu isso antes, não?" Quase que Benoni era devolvido. Ganhou passe permanente depois que nasceu Liz, filhinha deles, cuja beleza mamãe não cansa de admirar. Liz que ganhou esse nome por conta da revista que mamãe e algumas amigas de juventude, lá na Paraíba, publicaram nos anos 20: "Flor de Liz". Outro dia, ouvindo os projetos de um de seus netos que planejava viajar para a Europa, mamãe comentou: "Será que eu ainda vou à Europa antes de morrer?" Foi um comentário tão inusitado porque ela acabara de sofrer muito, muito mesmo, para entrar e sentar no banco do carona do carro. Mesmo assim, quando chegamos em casa, ficamos fazendo planos para a viagem, imaginando os lugares a que iríamos e quem levaríamos na nossa excursão. Tocou o telefone e Clélia comentou com quem tinha ligado que mamãe estava planejando ir à Europa. Foi logo repreendida para deixar de ser afobada. Mamãe disse: "Que exagero, eu não vou viajar para a Europa amanhã, não". Não vai nem amanhã, nem depois. É um sonho impossível pois mesmo para ir ali perto na casa da Lucia ou da Socorro, o entrar e sair do carro, o andar por pouco que seja, lhe custa. Mas quem vê suas fotos, onde aparece sempre elegante, com seus belos cabelos e seu charmoso sorriso, nem desconfia. Mamãe sempre saiu bem na fotografia. E para terminar essa crônica que já vai se tornando terrivelmente sentimental, saúdo d. Dolores com os versos finais da mesma canção acima citada e que dizem: "Mamãe, mamãe, mamãe/ Tu és a razão dos meus dias/ Tu és feita de amor e esperança/ Ai, mamãe, mamãe/ Eu cresci, o caminho perdi/ Volto a ti e me sinto criança/ Mamãe, mamãe, mamãe/ Eu te lembro, o chinelo na mão/ O avental todo sujo de ovo/ Se eu pudesse/ Eu queria, outra vez, mamãe/ Começar tudo, tudo de novo...".
Posted on: Mon, 10 Jun 2013 12:57:00 +0000

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