30 de setembro de 2013 Hoje conversei bastante com uma pessoa - TopicsExpress



          

30 de setembro de 2013 Hoje conversei bastante com uma pessoa querida sobre moda, e principalmente sobre como nosso país se enxerga através da moda que fazemos. Ou talvez, da que tentamos fazer. Nacionalismos à parte, sempre achei que o mundo espera de nós algo que traduza a exuberância (em vários sentidos) que temos aqui, as imagens clichês incluídas. Somos um país que aprendeu a se fazer com estrangeiros, e nisso muito de nossa identidade se perdeu. A moda está entrando em um momento histórico onde valores como individualismo e autenticidade são cada vez mais descartados. E não falo só de roupas quando me refiro à ela: cinema, vídeo, música, artes plásticas, praticamente qualquer tipo de expressão artística hoje é feita por grupos, ou pelo menos é imediatamente inserida em um contexto maior. A época das grandes estrelas, assim como a das supermodels, pertence a um passado já se tornando remoto (e nossa Gisele será um dia vista como a última delas), cantoras e atrizes são cada vez mais "cult", conhecidas por um público identificável e impressionável com -e só com- aquele tipo específico de estética. Reconhecimento profissional é a situação em que profissionais da área são eleitos como dignos de mérito, e a fama é o que se estende além desse círculo e se torna informação comum. Naomi Campbell, Gisele e Kate Moss -essa talvez em menor intensidade- são personalidades públicas, parte de um imaginário que inclui as socialites e atrizes de cada país que as noticia. Já Karlie Kloss, Edie Campbel ou mesmo nossa Rachel são modelos que pouquíssima mídia produzem além de um meio restrito. São modelos que se sucedem segundo a voracidade febril que elege e deleta com a mesma intensidade. Isso também se espelha nos novos estilistas -atualmente chamados diretores criativos- muitos dos quais representam outros nomes, e num processo mercadológico meio caduco, são levados, com poucas exceções, a "rejuvenescer" marcas já quase seculares, ao invés de trilhar caminhos próprios. O resultado varia de esquizofrenias-fashions como a coleção grunge para a Yves Saint Laurent (hoje Saint Laurent Paris), a pasteurização de um estilo original (no caso de Alexander McQueen), e a troca excessiva de estilos, no caso de Raf Simons, que fazia um trabalho consistente na Jil Sander e acabou tendo que ocupar a vaga deixada por John Galliano, estilista que por mais de dez anos reinou absoluto na Dior. Para o mercado, era clara a dificuldade de Raf em enfrentar a situação, já que Galliano é um dos maiores showman do século vinte, comparável apenas ao próprio Monsieur. Mas poucos esperavam um trabalho tão tímido e bem menos interessante que o apresentado na Jil Sander. Comecei meu texto com a intenção de falar sobre o olhar. Assuntos levam a outros, e acho que nas entrelinhas quis colocar minha inquietação com esse tempo que se vai. Sou da época em que publicações estrangeiras eram raras por aqui, a internet não era sequer sonhada, e roupas e coleções demoravam meses pra chegar ao público geral, e sempre de forma bastante fragmentada. A formação da moda brasileira no final dos anos 70 e começo dos 80, que acompanhei com muita atenção mas pouca informação, é material para um livro que ainda merece ser escrito. Uma das imagens-fashion mais bonitas que trago é a de ver Cristina Franco, jornalista global reverenciada na época por seus figurinos de vanguarda, apresentando sua coluna no Jornal Hoje de sábado. Em uma época em que não tínhamos praticamente informação nenhuma, Cristina, com sua voz grossa, sua maquiagem kabuki e seus adereços de ídolo pagão, era o oráculo divino. Eram cinco, dez, quinze minutos de sonho. A internet permite o acesso a um mundo praticamente ilimitado de idéias, mas com tanta informação, muito se perdeu da capacidade de amar cada foto como uma relíquia. Lembro das minhas primeiras Vogues americanas, no começo dos 80, compradas quase sem querer em uma banca de revistas usadas. Mais tarde as inglesas, as italianas. Decorávamos cada fotografia, cada letra, cada canto, porque era o que tínhamos. E não falo de dinheiro, falo de oportunidades. Hoje vejo a proliferação de sites e comunidades, onde são postadas quase que ininterruptamente milhares de fotos, com todos os créditos e definições possíveis. E me pergunto às vezes se esse excesso de conhecimento se reflete num olhar especial. Porque o excesso tolhe, cega, sufoca. Ter um é ter um mundo. Ter um mundo é ser cego. E tentando juntar o que falei, chego no meu começo. Durante os anos 80, existia em Paris uma escola -ainda existe, na verdade, mas sem o frisson original- chamada Studio Berçot, dirigida até hoje por uma grande personalidade-fashion, Madame Marie Rucki. Ter saído da adolescência (e já sabendo que a moda seria sempre o único futuro possível), estudar no Berçot -por onde vários estilistas nacionais passaram- era como entrar no paraíso. A partir dos anos 90, Rucki começou a visitar o Brasil para um workshop anual, e sempre tive muita vontade de participar. Só consegui fazer isso em 97, e como toda grande vontade que se realiza, foi uma sucessão de emoções. Por estar lá e poder gastar meu francês tosco de dez palavras, por estar perto de uma lenda viva, por estar mostrando minhas idéias pra alguém que as Olhava, por perceber que meu esforço em absorver cada partícula de moda desde a infância era parte de uma realidade comum a todos que querem se chamar estilistas. Rucki tem um modo próprio de ser, que eu chamaria de professora brava. Um turbilhão de idéias jorrando o tempo todo, a cara séria que esconde uma piada instantânea, o dito francês, a nonsense, o "dans mon pays..." que é tão coisa de quem constrói, ao invés de destruir. Me destaquei no curso, como de algum modo sabia que ia acontecer. Ali percebi que a minha postura tresloucada e gauche de toda uma vida não era mais do que a vida comum de um artista questionador. Cheguei com meus guardados de trinta anos e Rucki teve a paciência e a nobreza de olhar todos, de me ouvir, de entender o que cada um deles representava para mim. Ali já aprendi a primeira lição: ela olhava para tudo, e quando digo tudo, era Tudo: frente, verso, tipo da letra, cor do texto, formato da fotografia, como ela se inseria, a gramatura, a cor, a sombra. Percebi que muitas vezes ela virava a foto e a deixava virada, e onde a princípio eu via apenas o verso de mais um vestido, ela via árvores centenárias, uma escultura arborígene, uma letra gótica, o rasgo do papel que criava uma mancha. Olhe pras coisas, ela me ensinou, olhe Vendo. Enxergue, se aproprie, veja cada pedaço, cada milímetro do que te oferecem. A cor da letra da revista te diz a cor que a editora acredita, a forma da letra nos editoriais é o estilo da estação. A modelo, a pose, a roupa escolhida. O banco, a mancha na parede, a sombra do fotógrafo, a roupa do menino no fundo da foto que carrega um cachorrinho nos braços. É de ver e nos saturar com imagens que podemos escolher o que é belo. Milhares, milhões de imagens. "Eu já vi um milhão de vestidos, disse uma vez Saint Laurent à uma repórter que esperava dele uma fofoca... já vi o mundo, quem é esse menino de quem você me pergunta?" E logo aprendi a segunda dica: o valor da boa informação, do bom gosto, do refinamento. Da sincronicidade, das boas histórias. Carreguei por muitos anos uma foto -que até hoje tenho, no meu famoso corredor de fotografias- de uma mulher afegã vestida com uma burka vermelha, com uma gaiola vazia na cabeça. É de uma National Geography dos anos sessenta, e desde sempre fez parte da minha história. No primeiro dia do workshop, Madame Rucki apresentou um vídeo da segunda coleção de Givenchy, feita por um jovem estilista chamado Lee McQueen, uma aposta de Bernard Arnaut, milionário francês que tinha adquirido algumas marcas-fashion, entre elas Dior, onde colocou o então jovem John Galliano. Era algo inusitado pra mim, o desfile tinha sido há poucos dias atrás, e como disse, informação assim era uma coisa tão rara que não em lembro de ter visto um desfile internacional em vídeo até então. E no meio do desfile de McQueen, uma sucessão de deusas e demônias amalucadas, apareceu a minha mulher. Feia, mal resolvida, pesada, mas era Mcqueen, era 97, a revolução da couture, era o novo. No outro dia, ao mostrar as fotos, Rucki viu a mulher e eu comentei que estava triste porque durante muito tempo tinha carregado ela comigo e agora ela tinha sido usada, e tudo tinha terminado, e mais resmungos de quem não entende nada de nada. Madame só fez um puff e disse não esquenta, esse menino não inventou a Lua. Mais essa: referências são universais. Quem mais além de mim encontrou uma revista velha, se apaixonou por uma foto emotiva -no fundo bem banal, se formos pensar, liberdade, gaiola, burka- mas em cores primárias, fortes, quase um Matisse. Quantos fizeram o mesmo, arrancaram a foto e as pregaram em murais durante os anos? Existe uma sintonia no mundo, e isso é mais do que uma cópia. Algumas pessoas "pensam" as mesmas coisas, desejam e suspiram por semelhanças, e isso pode sim se refletir em resultados bem parecidos. Roupas, músicas, filmes. O importante não é quem fez, ou quem fez primeiro, mas sim quem fez Bem. E durante quinze dias aprendi o alicerce do olhar: não ter pena de si mesmo, destruir o ruim, fugir do óbvio e do que já foi feito, fugir do careta, do histórico, do fantasioso, do fácil, do cafona. O valor de um tecido, a roupa que realmente pertence e é o retrato de uma época, a busca de um estilo internacional. Como falei no começo, brasileiro sim, mas internacional. Como? No meu caso, bijoux gigantes que fazia na época, fios de arame dourado retorcido que chamaram a atenção de quase todos, mas não usadas como acessórios: costuradas nas roupas, fazendo às vezes das costas de um vestido de festa, uma manga, um qualquer coisa que não fosse colar e cinto. Tudo, menos o óbvio. "Gianni Versace acaba de morrer, alguém tem que ficar no lugar dele" Olhar as fontes de suas idéias, sempre: o lugar onde tudo começa. Quero as duquesas russas? Ok, mas não vamos ver o editorial da ELLE com os vestidos pompom, vamos nas telas do Hermitage, nos ovos Fabergé, nos diamantes de Catarina. Mais, na forma das pedras, dos engates, do pescoço que as carrega. Mais ainda, na estrutura molecular das pedras, na ligação entre as moléculas, reproduzir o desenho de uma estrutura química para uma estampa. A duquesa russa vista do modo mais próximo possível. Fiz uma coleção inspirada nos demônios do candomblé, a partir de um livro de vudu que tinha comprado para o curso e que quase serviu de briga entre eu e ela, cada um querendo ver e mostrar coisas ao mesmo tempo, a ponto dela comprar um livro igual durante o almoço para poder ver com calma o que queria. Vivi duas semanas sendo o que merecia e devia ser, se algumas coisas fossem diferentes. Ganhei um espaço lá pra estudar, mas não pude ir. O tempo passou, minha vida se estabeleceu aqui e carreguei sempre esses ensinamentos, que fizeram do meu trabalho algo menos bobo. "Seu desenho é bom, essa roupa é bonita, mas faz pelo menos uns cem anos que as pessoas não usam isso. Por que você não transforma esse vestido de veludo art nouveau num conjunto de blusa e pantalona? Uma camiseta e pantalonas largas, vai dar o mesmo efeito e é atual. Essa pena que sai do decote é um broche que você usa no desfile. E economiza tecido, você não tem idéia de como é caro" E moda, brasileira ou não, precisa disso mesmo sem saber, ou sem querer saber: profissionalismo, olho, pesquisa, coragem em reconhecer seu pior e fugir dele, paciência pra encontrar a referência perfeita (que nunca é a geral), esforço pra encontrar o fio que nos liga ao "internacional", e principalmente, principalmente saber que moda é produto, feito pra pessoas reais, com corpos reais, orçamentos reais, desejos reais. Como me disseram uma vez, e guardei como a melhor definição de moda que já ouvi: quando entro em uma loja, não sei quais são as tendências nem o que se está usando, quero apenas uma roupa que me deixe bonita.
Posted on: Tue, 01 Oct 2013 05:41:30 +0000

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