Mais de cinquenta anos atrás, um dos nossos mais importantes - TopicsExpress



          

Mais de cinquenta anos atrás, um dos nossos mais importantes filólogos — o sempre lúcido Antenor Nascentes — escreveu um texto lapidar sobre o uso do lhe no português brasileiro: No português do Brasil aparece lhe [...] como objeto direto, sob a condenação unânime dos gramáticos. Até hoje os gramáticos se têm recusado a admitir este fato da língua. A quem conhece a mentalidade retrógrada e ultraconservadora dos gramáticos o fato não parece estranho. Os que, respeitando embora os ditames razoáveis da gramática, olham para a evolução natural da língua e aceitam os fatos consumados contra os quais é inútil lutar, pensam de outro modo e admitem lhe como objeto direto. Eu pertenço a este número. Na linguagem corrente, o emprego de lhe dativo se atenuou, usando-se de preferência as expressões a ele, para ele, a você, para você. É a tendência analítica da língua. Eis o primeiro passo para o novo valor. Este pronome desvalorizado, por efeito da analogia [...] foi utilizado para completar uma série, ao lado de me e te. Me e te servem para acusativo [objeto direto] e dativo [objeto indireto]. A lhe, da terceira pessoa, dativo, correspondia o, a, para acusativo. Que fez a língua? Para uniformizar, deu a lhe a função de acusativo e assim ficou: me acusativo e dativo, e lhe, também, acusativo e dativo. Nascentes prossegue, dizendo que tal emprego de lhe “não é recente” e parte para uma série de citações — literárias — em que ocorre o uso acusativo desse pronome. Oferece exemplos, raros, da língua arcacia e clássica, mas logo demonstra a expansão desse emprego do lhe na língua literária moderna e contemporânea. Em sua lista, que se inicia na primeira metade do século XIX e prossegue até a época de produção do artigo (1960), aparecem Martins Pena, Juvenal Galeno, Adolfo Caminha, Virgílio Várzea, Fagundes Varela, Machado de Assis (“Não lhe acusem de estrangeirismo”), Artur Azevedo, Jorge de Lima, Marques Rebelo, Armando Caiuby, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, Rui Santos... Menciona também uma observação de Machado de Assis, que escreveu, numa crônica de 1894: "A palmatória dos gramáticos pode punir esta expressão; não importa, o eu lhe furo traz um valor natal e popular, que vale por todas as belas frases de Lucrécia." Nascentes chama a atenção para o fato de que o lhe acusativo (isto é, objeto direto) “aparece quase sempre na alocução”, ou seja, na conversa, no diálogo, e “aplica-se sempre a pessoas”, nunca a objetos inanimados. E conclui seu sucinto mas valioso estudo dizendo: Qual a conclusão que se deve tirar de todos estes fatos? A de que lhe se emprega equivalentemente a o, a e de que está ganhando terreno cada vez mais. Por que então não legitimar de uma vez este emprego? Porque os gramáticos, com seu espírito retrógrado e ultraconservador, a isso se opõem. No dia, certamente remoto, em que eles aceitarem o fato consumado, nossa língua (a falada no Brasil) terá feito o que os espanhóis há muito tempo fizeram. Não importa que o emprego não exista em Portugal.
Posted on: Sat, 13 Jul 2013 03:36:07 +0000

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