O espetáculo não pode parar? A caracterização da nossa - TopicsExpress



          

O espetáculo não pode parar? A caracterização da nossa sociedade vem demandando grandes esforços de reflexão, que com suas discrepâncias e convergências, apresentam o significativo lugar ocupado pela Comunicação e pela informação na conformação da sociedade capitalista atual. Uma reflexão pautada em Platão, Lipovetsky e Debord por Renato Nunes Bittencourt A política do “pão e circo” (que, no capitalismo tardio, apresenta de forma nítida sua extemporaneidade), as execuções escabrosas de condenados e outros atentados contra a dignidade humana constituem um elemento indissociável do desenvolvimento civilizatório ocidental. Todos esses fenômenos sociais apresentam o ponto comum de associarem intrinsecamente a exaltação da visibilidade, da crueldade e do entretenimento público como mecanismos de poder sobre a subjetividade popular. O espetáculo apropriado pelo poder estabelecido muitas vezes apresenta uma capacidade de submissão das massas mais intensa do que a infame violência legítima do Estado. Conforme argumenta o sociólogo francês Joff re Dumazedier (1915-2002), a exploração comercial dos grandes meios de divertimento e informação procura sempre no homem um cliente fácil, e, ao oferecer-lhe a fruição de um mundo limitado, desvirtuado e falso, tornar-se-á não só um empecilho para o desenvolvimento humano como também contribuirá para sua estagnação e regressão.1 A MORALIZAÇÃO DO DESEJO A ontologia do espetáculo se configura pela afirmação da aparência na percepção da consciência humana, e sua extensão mais imediata ocorre no dispositivo espetacular, que se sustenta pela hipertrofia do olhar, legitimando moralmente a tão vilipendiada curiosidade pela contemplação ávida pelo chocante. Já na Filosofia grega, Platão apresenta, em sua República, o poder dessa disposição psicológica da seguinte maneira: Leôncio, filho de Aglaion, ao regressar do Pireu pelo lado de fora da muralha norte, percebendo que havia cadáveres que jaziam junto do carrasco, teve um grande desejo de os ver, ao mesmo tempo que isso lhe era insuportável e se desviava; durante algum tempo, lutou consigo mesmo e velou o rosto; por fim, vencido pelo desejo, abriu muito os olhos e correu em direção aos cadáveres, exclamando: “Aqui tendes, gênios do mal, saciai-vos desse belo espetáculo”.2 O homem capaz de estabelecer em sua vida a interiorização da consciência não se deixa afetar pelas impressões sensíveis que, muitas vezes, são causadoras do engano. O ESPETÁCULO APROPRIADO PELO PODER ESTABELECIDO APRESENTA UMA CAPACIDADE DE SUBMISSÃO DAS MASSAS MAIS INTENSA DO QUE A VIOLÊNCIA LEGÍTIMA DO ESTADO A política do “pão e circo” instituída na Roma Antiga se faz presente ainda hoje. O futebol brasileiro é constantemente comparado à política romana de alienação É imprescindível ressaltar que a moralização em relação ao desejo humano de ver o proibido encontra uma forte representação normativa na Teologia cristã, que denominava como concupiscência do olhar a curiosidade humana, disposição de fazer uso inadequado daquele que era considerado o sentido mais elevado, a visão. Não cabia ao ser humano pretender conhecer o interdito, o misterioso, pois isso acarretaria um sentimento de soberba em sua existência, ao mesmo tempo em que estimularia em sua imaginação a efervescência de desejos lúbricos. Santo Agostinho (354-430), nas suas Confissões, descreve o efeito prejudicial da curiosidade na vida do homem aspirante ao Bem Divino, narrando o caso de seu amigo Alípio: “Sem, de modo nenhum, abandonar a carreira mundana que seus pais lhe pintaram mágica, partira, antes de mim, para Roma, a estudar Direito. Deixou-se arrebatar incrivelmente pela excessiva avidez dos espetáculos dos gladiadores. Detestava ao princípio, por completo, tais divertimentos. Uma vez, alguns amigos e condiscípulos, ao voltarem de um jantar, encontraram-no por acaso no caminho e levaram-no com amigável violência ao anfiteatro a assistir aos jogos cruéis e funestos daquele dia. Ele recusava com veemência, e resistia, dizendo: ‘Por arrastardes a esse lugar e lá colocardes o meu corpo, julgais que podereis fazer que o espírito e os olhos prestem atenção aos espetáculos? Assistirei como ausente, saindo assim triunfante de vós e mais dos espetáculos’. Ouvindo essas palavras, levaram-no consigo ao anfiteatro, sem mais demora, com desejo, talvez, de observar se era capaz de cumprir a promessa. Apenas lá chegaram, ocuparam os lugares que puderam. Tudo fervia nas paixões mais selvagens. Ele, fechando as portas dos olhos, proibiu ao espírito cair em tais crueldades. Num incidente da luta, um grande clamor saído de toda a multidão sobressaltou-o terrivelmente: vencido pela curiosidade e julgando-se preparado para desprezar e dominar a cena, fosse qual fosse, abriu os olhos. Imediatamente foi ferido na alma por um golpe mais profundo do que o que havia recebido no corpo o gladiador a quem desejou contemplar. Caiu mais miseravelmente do que aquele por cuja queda se tinha levantado o clamor. Entrou-lhe esse pelos ouvidos e abriu-lhe os olhos, por onde foi ferida e abatida a alma, até então mais audaz que corajosa e tanto mais fraca quanto mais presumida de si mesma, em vez de confiar em vós, como devia. Logo que viu o sangue, bebeu simultaneamente a crueldade. Não se retirou do espetáculo, antes se fixou nele. Sem o saber, sorvia o furor popular, deleitava-se no combate criminoso e inebriava- se no prazer sangrento. Já não era o mesmo que tinha vindo, mas um da turba a que se ajuntara, um verdadeiro companheiro daqueles por quem se deixara arrastar. Que mais direi? Presenciou, gritou, apaixonou-se e trouxe de lá um ardor tão louco que o incitava a voltar não só com os que o haviam arrastado, mas a ir à sua frente e arrastando os outros”.3 Os enunciados típicos da cultura de massas precisam ser os mais genéricos quanto possível, para nivelar uma gama de espectadores sob um denominador comum que os mantenha ligados na programação comercial das mídias REPRESENTAÇÃO Cabe ressaltar que, nesse contexto civilizatório, o espetáculo ainda não havia se transformado em uma ideologia, mas apresentava as características cruciais que permitiriam o surgimento da moderna “sociedade do espetáculo”. Com efeito, no decorrer da expansão capitalista em nossa organização societária, os detentores dos meios de produção da Comunicação de massa, em sintonia com as demandas demagógicas do Estado moderno, promoverão a inserção da lógica espetacular em todas as instâncias da esfera pública, integrando entretenimento massificado e exaltação do poder como elementos de encantamento social. Para Guy Debord (1931-1994), toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.4 A sociedade moderna, graças ao desenvolvimento dos meios de comunicação e de entretenimento, modifi- cou a relação do sujeito com todas as suas instâncias participativas na esfera pública, de modo que, impera agora a espetacularização da existência na educação, que exige a capacidade de estimulação histriônica dos sentidos para que a consciência estudantil se foque nos conteúdos pedagógicos, na Política, que se torna mera encenação hipócrita que evidencia o vazio da representatividade, e na produção cultural industrializada, que converte a obra de arte em produto padronizado para fácil assimilação dos consumidores e promove a degradação da experiência estética em mero espetáculo desprovido de substancialidade crítica. Nesse contexto, cabe a conhecida sentença de Guy Debord: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens”.5 Trata-se do fetichismo das imagens, no qual essas como que adquirem vida própria na sociedade capitalista e determinam o estabelecimento de todas as interações sociais, artificializando as mesmas por meio da lógica das aparências, de poder e de sedução. O dispositivo espetacular cria o controle social através da sedução imagética da exposição alheia, suprimindo, todavia, a difícil relação intersubjetiva da alteridade; com efeito, a própria experiência da compreensão da subjetividade da figura do Outro se torna fragmentada a partir do mecanismo espetacular. As vidas simuladas de pessoas célebres ou comuns se tornam repasto para o consumo dos espectadores ansiosos pela recepção de estímulos sensórios intensos. O filósofo francês Gilles Lipovetsky (1944) indaga: “O que ainda consegue nos espantar e escandalizar? A apatia responde à pletora de informações, à sua velocidade de rotação; assim que registrado, um acontecimento é imediatamente esquecido, expulso por outros ainda mais sensacionalistas”.6 PÁGINAS :: 1 | 2 | 3 | Próxima >> Renato Nunes-Bittencourt
Posted on: Mon, 25 Nov 2013 01:01:21 +0000

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